«40 vidas por Abril»

O que a memória registou <br>do país que fomos

Domingos Lobo
A memória é um dos elementos configuradores de toda a história da humanidade. É  através da memória, desse acervo pessoal, contudo transmissível – a memória é a nossa forma de armazenar um tempo, uma vivência, as dores e os afectos; modo pessoalíssimo de entender e seleccionar (a memória é selectiva) um determinado acontecimento e, assim, aferir o ponderável da realidade que lhe subjaz – que somos levados à escrita, ao testemunho, ou seja, aos modos de inscrever para a posteridade, tornar perene o efémero, mesmo quando ele, tempo e suas circunstâncias, nos deixaram feridas difíceis de curar.
O livro 40 Vidas por Abril, organizado por Carlos Ferreira, vai nesse sentido: acrescenta ao histórico do período fascista (1926/1974) depoimentos de quem, nas suas diversas condições sociais, económicas e profissionais, sofreu na carne a violência persecutória, a tortura, as prisões do salazarismo/caetanismo. Ou seja, é um livro em que o real domina o histórico e lhe dá dimensão, na sua sensível e dialéctica factualidade, humana.
Há livros que nos tocam, que penetram fundo o nosso sentido de justiça, despertando-o, que atravessam os sinuo-sos territórios das palavras expurgando-as da enxúndia que as mistifica e obscurece, para as tornar claras, úteis, socialmente actuantes – este é um desses livros.
40 Vidas por Abril diz-nos a verdade dos que, por motivos diversos, viveram um tempo de opressão e de mentira; a quem, por crimes ideológicos, da usura levada a extremos de submissão, retiraram a possibilidade a uma vida digna, a uma profissão, à persecução de um projecto, à afirmação colectiva e aos mais elementares direitos.
40 Vidas por Abril, conta-nos, em depoimentos directos de homens e mulheres que pensaram e agiram face a uma determinada realidade, as experiências vividas/sofridas no reino da pequenez institucionalizada e do arbítrio sem freio, e ousaram sonhar outros mundos, outra justiça, outra lisura – para si e para o comum dos seus concidadãos.
Livro feito de vozes, 40 como os anos que a revolução tinha ao tempo da sua feitura, que se ergueram da sua própria sombra – textos que são, na sua esmagadora maioria, de gente anónima, ou desconhecida do grande público – para nos dizer da dignidade, de vidas vividas com códigos morais e éticos; que sofreram o esconjuro, a vileza suprema, de políticas e seus agentes, suporte e rosto dos interesses do capital, e se negaram a ser submetidos aos seus ditames, vergados ao medo, contribuindo também, desse modo, para que Abril fosse possível.
Estas vozes contam-nos não a «espuma dos dias» mas a essência desse amplo movimento de marcha do homem para a sua desalienação e liberdade; essa contínua busca da clareza e da justiça social; a razão de uma luta e dos sofrimentos que essa corajosa prática crítica trouxe às suas vidas, ao seu trabalho, aos seus quoti-  dianos. Vozes que alertam, que acusam, que dizem do ultraje e do ódio, das sevícias sofridas à mão dos torcionários, dos limites que um país de liliputianos impunha ao comum dos cidadãos (era proibido crescer, como era proibido dar expressão ao sonho) – modo de dizer: foi assim, foi isto que o Fascismo nos fez, e ainda dói.
Carlos Ferreira, que organizou, a partir do acervo documental da Universidade Popular do Porto (UPP), e de depoimentos por ele recolhidos, este 40 Vidas por Abril, diz-nos ao que vem, o que este livro é e o que o justifica hoje e aqui: Este livro é a importância das vozes. Que falam de meio século de ignomínia. A voz dos indignados. A voz dos que fizeram frente à falta de direitos mínimos que atiravam para a valeta do desespero um povo inteiro. E quem eram, são essas vozes, o que as singulariza e junta neste histórico testemunho colectivo: muitos eram e são comunistas, emergindo, por isso, a importância do PCP no combate e na resistência. Mas há outros. Estão aqui por direito próprio, como inesquecíveis amigos e companheiros.
E os «amigos e companheiros» que fazem este livro, são, ou foram, metalúrgicos, deputados, operários, economistas, engenheiros, ferroviários, médicos, empregados de escritório, professores, artistas, escritores, gráficos, jornalistas, livreiros, bancários, pescadores, mú- sicos, costureiras, sociólogos, fotógrafos: um polifónico coro que neste livro ergue a voz para nos deixar mais ricos, mais certos dessa certeza de que «é o futuro que nos convoca para o construir, porque ninguém o fará por nós». Isto, e tudo o mais que este livro exemplarmente revela, sabiam (sabem) este punhado de homens e mulheres (são 40, mas quantos mais, quantos mil por este país o sabem), que nesses dias da vergonha traziam nos olhos o cintilar febril de tempos mais justos – os que contaram, os que contam.
As experiências pessoais que este livro inscreve como um libelo acusatório contra o Fascismo, em discursos imbuídos de razão e da complexa realidade, das suas intrínsecas dinâmicas, de que só o materialismo dialéctico é capaz de explicar a natureza e o movimento; estes depoimentos, traves lineares que convocam e conduzem todas as formas de luta e de resistência, são um compromisso com o nosso tempo; esta memória vertida em textos ora sensíveis, ora lucidamente críticos, ora argutos e doridos – pelos que já partiram; por estes dias de regressão a alguns dos sobressaltos desse terrível passado (a fome, a miséria, a emigração, a usura, o medo, a exclusão) –, são alertas para que se não repitam tempos assim.
O diletantismo, que por aí abunda em discursos atrelados à «voz do dono», dos vendedores de veleidades metafísicas, as abstracções mistificadoras, os dislates aberrantes que tentam ocultar a verdade histórica, factual, que o Fascismo foi, têm neste livro um documento pleno de verdade e de vida, que deita por terra os seus canhestros mecanismos de ocultação. É por retirar, ao discurso histórico da direita revanchista, o nevoeiro espesso dos embustes, que este livro é, nestes nossos dias, não apenas necessário mas útil para um melhor entendimento do que foi, e das consequências e feridas que deixou no tecido político, social e económico do país, o Fascismo de Salazar e Caetano.
Do magnífico prefácio que Jerónimo de Sousa escreveu para este livro, sublinho o parágrafo em que o Secretário--geral do PCP define as razões que sujeitaram o povo português à mais abjecta repressão: Tudo isso para forçar o    violento processo de centralização de capital que fez com que apenas sete grandes grupos monopolistas, que constituíam a principal base de sustentação do Fascismo, se tornassem donos e senhores do país. Tudo isso para sufocar toda e qualquer reivindicação ou manifestação de descontentamento popular. Tudo isso para assegurar, com a ajuda e sujeição ao imperialismo estrangeiro, a exploração e opressão dos povos que nas colónias portuguesas lutavam de armas na mão pela sua independência.
 
    40 Vidas por Abril 
   Organização Carlos Ferreira
    Prefácio Jerónimo de Sousa
Capa de António Fernando
Editora MODODELER
– Porto, Maio de 2015



Mais artigos de: Argumentos

No dia dos avós

O passado domingo, dia 26 de Julho, foi o Dia dos Avós pelo menos em Portugal e no Brasil, tendo a data sido escolhida, ao que consta, em consequência de o dia ser também consagrado a Joaquim, santificado por ter sido avô de Jesus graças à extraordinária...

Propaganda do Governo <br>e a falsa criação de emprego

Com a aproximação das eleições legislativas assiste-se da parte do Governo e dos comentadores ao seu serviço à tentativa de branquear muitas das malfeitorias levadas a cabo nos últimos quatro anos, tarefa difícil mas de que eles não desistem. Tarefa...